domingo, 5 de março de 2017

Vamos trabalhar a geografia na poesia?

EU, ETIQUETA

Em minha calça está grudado um nome 

que não é meu de batismo ou de cartório, 
um nome... estranho. 
Meu blusão traz lembrete de bebida 
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro 
que não fumo, até hoje não fumei. 
Minhas meias falam de produto 
que nunca experimentei 
mas são comunicados a meus pés. 
Meu tênis é proclama colorido 
de alguma coisa não provada 
por este provador de longa idade. 
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, 
minha gravata e cinto e escova e pente, 
meu copo, minha xícara, 
minha toalha de banho e sabonete, 
meu isso, meu aquilo, 
desde a cabeça ao bico dos sapatos, 
são mensagens, 
letras falantes, 
gritos visuais, 
ordens de uso, abuso, reincidência, 
costume, hábito, premência, 
indispensabilidade, 
e fazem de mim homem-anúncio itinerante, 
escravo da matéria anunciada. 
Estou, estou na moda. 
É duro andar na moda, ainda que a moda 
seja negar minha identidade, 
trocá-la por mil, açambarcando 
todas as marcas registradas, 
todos os logotipos do mercado. 
Com que inocência demito-me de ser 
eu que antes era e me sabia 
tão diverso de outros, tão mim mesmo, 
ser pensante, sentinte e solidário 
com outros seres diversos e conscientes 
de sua humana, invencível condição. 
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro, 
em língua nacional ou em qualquer língua 
(qualquer, principalmente). 
E nisto me comparo, tiro glória 
de minha anulação. 
Não sou - vê lá - anúncio contratado. 
Eu é que mimosamente pago 
para anunciar, para vender 
em bares festas praias pérgulas piscinas, 
e bem à vista exibo esta etiqueta 
global no corpo que desiste 
de ser veste e sandália de uma essência 
tão viva, independente, 
que moda ou suborno algum a compromete. 
Onde terei jogado fora 
meu gosto e capacidade de escolher, 
minhas idiossincrasias tão pessoais, 
tão minhas que no rosto se espelhavam 
e cada gesto, cada olhar 
cada vinco da roupa 
sou gravado de forma universal, 
saio da estamparia, não de casa, 
da vitrine me tiram, recolocam, 
objeto pulsante mas objeto 
que se oferece como signo de outros 
objetos estáticos, tarifados. 
Por me ostentar assim, tão orgulhoso 
de ser não eu, mas artigo industrial, 
peço que meu nome retifiquem. 
Já não me convém o título de homem. 
Meu nome novo é coisa. 
Eu sou a coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade ANDRADE, C. D. Obra poética, Volumes 4-6. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989.
Fonte: https://pensador.uol.com.br/frase/MjAyODM0/. Acesso em 06/03/17.

Monólogo Mundo Moderno - Chico Anysio

E vamos falar do mundo, mundo moderno
marco malévolo
mesclando mentiras
modificando maneiras
mascarando maracutaias
majestoso manicômio
meu monólogo mostra
mentiras, mazelas, misérias, massacres
miscigenação
morticínio, maior maldade mundial
madrugada, matuto magro, macrocéfalo
mastiga média morna
monta matumbo malhado
munindo machado, martelo
mochila murcha
margeia mata maior
manhazinha move moinho
moendo macaxeira
mandioca
meio-dia mata marreco
manjar melhorzinho
meia-noite mima mulherzinha mimosa
maria morena
momento maravilha
motivação mútoa
mas monocórdia mesmice
muitos migram
mastilentos
maltrapilhos
morarão modestamente
malocas metropolitanas
mocambos miseráveis
menos moral
menos mantimentos
mais menosprezo
metade morre
mundo maligno
misturando mendigos maltratados
menores metralhados
militares mandões
meretrizes marafonas
mocinhas, meras meninas,
mariposas
mortificando-se moralmente
modestas moças maculadas
mercenárias mulheres marcadas
mundo medíocre
milionários montam mansões magníficas
melhor mármore
mobília mirabolante
máxima megalomania
mordomo, mercedez, motorista, mãos
magnatas manobrando milhões
mas maioria morre minguando!
moradia meiágua, menos, marquise
mundo maluco
máquina mortífera
mundo moderno melhore
melhore mais
melhore muito
melhore mesmo
merecemos
maldito mundo moderno
mundinho merda!
Fonte: http://www.50emais.com.br/monologo-mundo-moderno/. Acesso em 05/03/17.

Para refletir...

"A capacidade de carga de uma ponte não é medida pela capacidade média dos pilares, mas pela capacidade do pilar mais fraco. Eu sempre acreditei que não se mede a qualidade de uma sociedade pelo seu Produto Interno Bruto, mas pela qualidade de vida de seus membros mais fracos".
Zygmunt Bauman.