domingo, 2 de abril de 2017

Para refletir - o poder aprisionador da globalização.


Disponível em: http://sarauxyz.blogspot.com.br/2016/08/milton-santos-capra-adelia-prado-moore.html#.WOEN7G_yvIU. Acesso em 02/04/17.

A geografia na poesia de Euclides da Cunha.

TEXTOS DE EUCLIDES DA CUNHA - São Paulo, 1982

Do topo da Favela, se a prumo dardejava o sol
e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno,
atentando-se para os descampados,
ao longe, não se distinguia o solo.

O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio
das camadas desigualmente aquecidas,
parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil,
e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas.
Então, ao norte da Canabrava,
numa enorme expansão dos plainos perturbados,
via-se um ondular estonteador;
estranho palpitar de vagas longínquas;
a ilusão maravilhosa de um seio de mar,
largo, irisado, sobre que caísse,
e refrangesse, e ressaltasse
a luz esparsa em cintilações ofuscantes...

É uma paragem impressionadora.
As condições estruturais da terra
lá se vincularam à violência máxima
dos agentes exteriores para o desenho
de relevos estupendos.

No enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos,
no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros,
no constrito das gargantas e no quase convulsivo
de uma flora decídua embaralhada em esgalhos —
é de algum modo o martírio da terra,
brutalmente golpeada pelos elementos variáveis,
distribuídos por todas as modalidades climáticas.

As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima
e na superfície, sem intervalos na ação demolidora,
substituindo-se, com intercadência variável,
nas duas estações únicas da região.

Dissociam-na nos verões queimosos;
degradam-na nos inversos torrenciais.
Vão do desequilíbrio molecular,
agindo surdamente,
à dinâmica portentosa das tormentas.
Ligam-se e completam-se.
E consoante o preponderar de uma e outra,
ou o entrelaçamento de ambas,
modificam-se os aspectos naturais.
 *****
nordeste persiste intenso, rolante, pelas chapadas,
zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante
das caatingas e o sol alastra, reverberando no firmamento claro,
os incêndios inextinguíveis da canícula.
O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra-se afinal.

Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de retirantes.
Vê-as, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda,
desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do caminho.
No outro dia, outra.
E outras.
É o sertão que se esvazia.

Não resiste mais.
Amatula-se num daqueles bandos,
que lá se vão caminho em fora,
debruando de ossadas as veredas,
e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa,
para as serras distantes, para quaisquer lugares
onde o não mate o elemento primordial da vida.

Atinge-os. Salva-se.
Passam-se meses. Acaba-se o flagelo.
Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão.
Remigra.
E torna feliz, revigorado, cantando;
esquecido de infortúnios,
buscando as mesmas horas passageiras
da ventura perdidiça e instável,
os mesmo dias longos de transes e provocações demoradas. 
O vaqueiro criou-se em uma intermitência, raro perturbada,
de horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias —
tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol,
arrastando de envolta no volver das estações,
períodos sucessivos de devastações e desgraças.
Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes.
Fez-se homem, quase sem ter sido criança.
Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras
nas horas festivas da infância,
o espantalho da secas no sertão.
Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa.
É um condenado à vida.
Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas
exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias.
Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
Aprestou-se, cedo, para luta.

O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista,
o de guerreiro antigo exausto da refrega.
As vestes são uma armadura.
Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta;
apertado no colete também de couro;
calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas,
cosidas às pernas e subindo até as virilhas,
articuladas em joelheiras de sola;
e resguardados os pés e as mãos
pela luvas e guarda-pés de pele de veado —
é como a forma grosseira de um campeador medieval
desgarrado em nosso tempo.
Esta armadura, porém, de um vermelho pardo,
como se fosse de bronze flexível,
não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo sol.
É fosca e poenta.
Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias...
A sela da montaria, feita por ele mesmo,
imita o lombilho rio-grandense, mas é mais curta e cavada,
sem os apetrechos luxuosos daquele.
São acessórios uma manta de pele de bode,
um couro resistente, cobrindo as ancas do animal,
peitorais que lhe resguardam o peito,
e as joelheiras apresilhadas à juntas.
Esse equipamento do homem e do cavalo talha-se à feição do meio.
Vestidos doutro modo não romperiam, incólumes,
as caatingas e os pedregais cortantes.

Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra,
o sertanejo do Norte teve uma árdua aprendizagem de reveses.
Afez-se, cedo, a encontrá-los, de chofre, e a reagir, de pronto.
Atravessa a vida entre ciladas,
surpresas repentinas de uma natureza incompreensível,
e não perde um minuto de tréguas.
É o batalhador perenemente combalido e exausto,
perenemente audaciosos e forte;
preparando-se sempre para um recontro que não vence
e em que se não deixa vencer;
passando da máxima quietude à máxima agitação;
da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro,
que o arrebata, como um raio, pelo arrastadores estreitos,
em busca das malhadas.
Reflete, nestas aparências que o contrabatem,
a própria natureza que o rodeia —
passiva ante o jogo dos elementos e passando,
sem transição sensível, de uma estação à outra,
da maior exuberância à penúria dos desertos incendidos,
sob o reverberar dos estios abrasantes.
É inconstante com ela.
É natural que o seja.
Viver é adaptar-se.
Ela o talhou à sua imagem:
bárbaro, impetuoso, abrupto...
Ali estavam, gafadas de pecados velhos,
serodiamente penitenciados, as beatas —
êmulas das bruxas das igrejas —
revestidas da capona preta
lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição;
as solteiras, termo que nos sertões
tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas,
soltas na gandaíce sem freios;
as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas;
em honestas mães de famílias;
nivelando-se pelas mesmas rezas.

Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos
em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece;
— rostos austeros de matronas simples;
fisionomias ingênuas de raparigas crédulas,
misturavam-se em conjunto estranho.
Todas as idades, todos os tipos, todas a cores...

 Ele seguia na frente — grave e sinistro — descoberto,
agitada pela ventania forte a cabeleira longa,
arrimando-se ao bordão inseparável.

Desceu a noite.
Acenderam-se as tochas dos penitentes,
e a procissão, estendida na linha de cumeadas,
traçou uma estrada luminosa no dorso da montanha...

Disponível em:http://www.antoniomiranda.com.br/sobreoautor/sobre_autor_index.html. Acesso em 02/04/17.